Num dia qualquer, estava voltando para o que chamei de casa durante um período nem curto nem longo, e vi um cartaz que anunciava a apresentação do filme, Nossa Música, por seu diretor, Jean Luc Godard. Um golpe de sorte! Fazia uma pesquisa sobre a relação entre música e filosofia, já assistira ao filme e calhou de eu estar no lugar certo na hora certa.
Larguei minha bolsa no chão da sala e bradei, Godard vai falar sobre seu último filme! Fui a primeira na fila de inscrições, e, por algum motivo, a produtora do evento foi tocada pelo meu entusiasmo. Durante o debate, eu estava sentada no chão da sala de cinema, bem perto do palco, a produtora se aproximou de mim e perguntou: “Você quer perguntar alguma coisa?” “Sim, quero!” E me passou o microfone. Enquanto levantava, falei baixinho com meus neurônios: façam seu trabalho de sinapse, vocês conhecem bem esse diretor e sabem do que se trata o filme, mas eles não me enviaram nada. Num ato de coragem, disparei: “Monsieur Godard, pour quoi Notre Musique?” Ele começou a amassar os parcos cabelos e me deu um fora tão óbvio ¾“Que pergunta é essa?!”, que eu comecei a rir diante da audiência francesa que me olhava com atenção. Ali, eu constatei algo que existia dentro de mim sem elaboração. Nossa vida ganha sentido pelos instantes intensos o suficiente para serem impressos na memória, tenham eles a duração que for. E, de repente, uma alegria indescritível me invadiu e transformou aquela experiência.
Tive muitos outros golpes de sorte. Alguns são os mais especiais, aqueles dignos de relato, aqueles que guardam em si um instante de eternidade. Estava de volta a Santa Teresa após um breve intermezzofora do bairro. Lá, próximo ao Largo do Curvelo, fui morar em um apartamento sonhado durante muitos anos. Qual não foi minha surpresa quando num dia qualquer, ao virar a chave da porta para entrar em casa, uma voz grave e forte soou: “Já morei aí, e fui muito feliz! Que você seja feliz também”! Era o teatro incarnado falando, Amir Haddad. Ele entrou no elevador, antes que eu pudesse dizer: que incrível, você é extraordinário, eu adoro o que você faz!
Amir é uma pessoa que conheço pouco, mas posso falar do que ele faz. Afinal, o que significa estar no mundo se não fazemos nada? Agora, que faço uma pesquisa sobre arte e produção de conhecimento, tive a sorte de entrevistá-lo. Amir faz o pós-teatro. Com todas as referências possíveis, vivenciadas ou lidas, ele faz o teatro na vida, o teatro visceral, físico, presente, o teatro em que ou você está ou não está, o teatro originário das máscaras usadas para a representação de todos os personagens. E para que isso aconteça é necessário um ator capaz de usar essas máscaras.
Mas, e esses personagens não somos nós, espectadores, transeuntes, interlocutores? Há um processo de troca, de transferência de máscaras? Acredito que sim. Apenas com uma grande diferença. A arte do teatro representa a vida e quando o espetáculo termina, as máscaras dos atores que emprestaram seus corpos àqueles personagens seguem seus caminhos. Nós, reles espectadores, precisamos decidir com qual máscara vamos continuar o nosso. Qual será nosso papel ao voltar pra casa, dormir, acordar, amar, odiar, trabalhar, descansar, olhar a lua, fechar os olhos, fechar os olhos diante de quem precisa, ignorar ou ajudar, dormir, acordar. Vida afora vivemos papéis diversos.
Por que, então, o teatro, se já vivemos de máscaras? Porque ele nos dá acesso a personagens inacessíveis, situações banais ou extraordinárias que intensificam nosso sentimento imediato de estarmos vivos, de passarmos por toda a gama de experiências que talvez não pertençam ao escopo da vida cotidiana. Porque ele nos mostra um outro mundo que é diferente do nosso, mas não é desigual. Um mundo em que cabe tudo o que é humano.
Amir Haddad, despretensioso como o mineiro que é, chegou em Santa Teresa, depois de muitas peripécias. Em São Paulo, onde se apaixonou cedo pelo teatro, soube bem atentar ao significado e à importância do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), deixou seu marco na fundação do Teatro Oficina, foi pro Pará, e lá solidificou a Escola de Teatro de Belém, até aterrissar no Rio de Janeiro, lugar dos aventurosos aventureiros dos parangolés de Ipanema e dos travestidos em parangolés da Lapa.
Quantas peças ele criou e recriou, dirigiu? Em quantas peças ele atuou, quantos atores ele já fez se entregarem ao teatro? Breves instantes passei com Amir, mas ouso dizer que todas essas coisas fazem parte do que ele é ao estar no mundo. Seja ensinando, seja com seu grupo “Tá na Rua”, fundado em 1980, seja desenvolvendo projetos novos, ele sempre está passando adiante a flecha de Eros imbuída do amor pelo teatro. “O teatro é como a vida, a vida é como o teatro”. É apenas um golpe de sorte que nos dá um breve momento de eternidade sem validade de duração. Viva a vida, viva o teatro!