O início do século XX pode ser lembrado como um período de mudanças geopolíticas, econômicas, sociais e de avanços tecnológicos nas ciências, nas artes, nos transportes, na indústria bélica. O rápido desenvolvimento urbano e o surgimento das primeiras metrópoles evidenciavam a distância entre a cidade e o campo; a crescente mecanização dos meios de produção, a precariedade social que assolava proletários e camponeses, além das contradições internas do sistema capitalista levaram as grandes potências europeias à Primeira Guerra Mundial, que ao fim de 4 anos deixou um saldo de 13 milhões de mortos, 20 milhões de feridos, além dos outros milhares que sofreram com a fome o desemprego e o colapso econômico.
Como não poderia ser diferente, a arte também passou por um profundo momento de crise. Os ideais artísticos de representação da realidade, tal como ela nos aparece, não faziam mais sentido frente a um mundo em ebulição. E como consequência, todos os movimentos artísticos, os “ismos” pós-impressionistas, promoveram uma revolução na forma, no conteúdo e nas técnicas até então vigentes no mundo das artes. Eles deram um verdadeiro cavalo de pau na história da tradição artística, inaugurando um cenário em que a arte deixa de ser produzida para a mera fruição, contemplação ou agrado do público e passa a ser instrumento de contestação, de provocação, de questionamento, de comunicação e, principalmente, de investigação sobre as possibilidades de se exprimir o que não nos é dado na realidade que nos rodeia. Há de se mencionar a importância que a recém-nascida psicanálise muito contribuiu para as pesquisas desses artistas.
Pensemos, por exemplo, em Marcel Duchamp (1887-1968), notório por obras como “A fonte” (um urinol de porcelana), que, ao se questionar sobre a função da arte, chega à conclusão de que ela nada mais é do que sua própria definição. Ou seja, qual é a função da arte? Ser arte. O que importa não é mais como os artistas criam, mas sim o quê eles criam. A partir dessa espécie de aplat conceitual, surgem o cubismo, de Bracque e Picasso (mencionarei apenas alguns artistas, ressaltando que minhas escolhas não implicam na diminuição do valor de todos os outros artistas que pertencem a esses movimentos); o construtivismo dos cartazes russos; o futurismo, de Umberto Boccioni; o expressionismo, de Munch; o dadaísmo, do Cabaret Voltaire; o surrealismo, de Dali, Magritte, de Chirico; e a correspondente revolução das técnicas e dos suportes materiais necessários para transformar esse grande caldeirão de ideias em obras. E é aí que entra a colagem.
Estritamente definida, poderíamos dizer que colagem é uma composição feita a partir do uso de materiais diversos, justa ou sobrepostos com o intuito de criar uma imagem. Como técnica, ela surgiu com a invenção do papel no início do século II d.C. na China, e vem sendo usada através dos séculos em diversos suportes materiais e, mais recentemente, nas montagens digitais. Podemos citar algumas variantes oriundas da colagem como a interferência em obras clássicas (LHOOQ [“Ela tem fogo no rabo”, a Gioconda bigoduda], de Marcel Duchamp); a utilização de recortes de palavras aleatórias para a construção de um poema (“Receita para se fazer um poema dadaísta”, de Tristan Tzara); a fotomontagem (“Dada Ernst”, de Hanna Höck, “Lolipop”, de Richard Hamilton); colagem de imagens e sons (“O Testamento de Orfeu”, de Jean Cocteau, “TV Budda”, de Nam June Paik); “desenhos com tesoura” (Henri Matisse). A colagem, ao apresentar diversas camadas de informações simultaneamente, sem a necessidade obrigatória de que haja uma lógica que as relacione, abre um universo infinito de possibilidades de expressão para o artista, além de provocar o espectador que é incitado a chegar à sua própria conclusão sobre o significado de um todo composto de interferências e recortes. O papel da arte não é mais fazer sentido é fazer pensar, e a técnica da colagem desempenha bem esse papel.
Se expandirmos o termo colagem para além do domínio das artes, descobriremos que ele pode nos levar a questionamentos e descobertas muito interessantes. Daniel Gilbert, professor de psicologia da Universidade de Harvard, em um livro que investiga o que nos faz felizes, fala de um mecanismo mental denominado “presentismo”. Esse mecanismo faz com que certos momentos passados que são esquecidos ou planos futuros que não podem ser previstos sejam preenchidos com a visão de mundo e os sentimentos que temos no momento presente, através de um processo de colagem. Gilles Deleuze, o filósofo francês, também fez uso da técnica da colagem em seu pensamento. Segundo ele, a grande potência da filosofia não reside na contemplação, na reflexão ou na comunicação de ideias, mas sim, tal como a arte na criação. Mas, enquanto a arte cria sensações, o papel da filosofia é criar um novo pensamento de conceitos singulares. Ora um conceito não é algo simples, é um todo fragmentado, dotado de uma multiplicidade de elementos heterogêneos, no entanto, inseparáveis. E, para criar conceitos que escapam da tradição filosófica fundamentada nas ideias da metafísica transcendente de Bem e Verdade, Deleuze faz uso de recortes do pensamento de filósofos considerados por ele filósofos da diferença, aqueles que parecem “escapar” da história da filosofia, por exemplo, Espinosa, Hume, Nieztsche, Bergson. Com esses recortes, ele cria um duplo diferente, original, singular, exatamente como fazemos ao elaborar uma colagem. Nos apropriamos de uma imagem, de um material e interferimos sobre eles, submetendo-os à nossa potência de criação.
De início, meu intuito era desenvolver este texto como o foco exclusivo na arte. Mas, eu não queria fazer apenas a descrição do uso de uma técnica. No dia 25 de Novembro de 2020 me ocorreu uma ideia um tanto obscura de ser desenvolvida. Exatamente nesta data, Maradona morreu, e toda a mídia debruçou-se em esmiuçar os recortes da vida conturbada e contraditória desse extraordinário jogador de pelota. Tendo como pano de fundo a pandemia que fez do mundo globalizado uma quase-unidade em prol do extermínio da Covid, pensei: a vida de cada indivíduo é um processo de colagem. Se alargarmos nosso pensamento sobre a colagem, poderemos pensar a que as coisas que nos são dadas, herdadas, por nós escolhidas, superadas, recuperadas…, incessantemente, são como pequenos pedaços de imagens e materiais que formam a unidade que nos constitui. Obviamente, a avassaladora maioria da população mundial não teve e jamais terá sua existência escrutinada pela mídia, mas não é isso que me fascina. E sim o fato de pensar a realidade como uma multiplicidade de dimensões que, de repente, foram inexoravelmente reunidas e que jamais voltam a ser o que eram. Sempre que pensamos no passado ou imaginamos o futuro, estaremos irremediavelmente cortando e colando recortes nessa imensa cartolina que chamamos vida. Um 2021 repleto de belas imagens para todos nós!
Liliane Marinho