Eu tinha o hábito de ouvir música num volume alto e, mal acordava, colocava invariavelmente Carmen de Bizet para tocar. Não há quem não desperte com a introdução dos temas dessa ópera: é uma barulheira só. Ninguém entendia muito bem por que eu chegava tão animada pra tomar café. Meu segredo era ouvir só o início da primeira faixa e pular para a Habanera: “L’amour est un oiseau rebelle…” Eu adoro ouvir os álbuns originais, mesmo que digitalmente. Sei  a sequência de alguns deles de cor. Tal como meus avós sabiam qual era a faixa seguinte de seus prediletos. Eles tinham reverência pela música. Sentavam, de banho tomado, exclusivamente para selecionar o que iam ouvir. Lembro de, em algum momento da vida, ouvir o relato de alguém que usava seu melhor terno quando lia um clássico. Acho bonito, mas esse não é o meu tempo. Ainda não consigo me desfazer dos meus queridos companheiros prensados a laser, protegidos por caixinhas de acrílico que, com fotos muito produzidas, reproduziam capas de LPs icônicos, davam acesso a algum show histórico ou traziam a última novidade musical. Cheguei num mundo que rapidamente transformou toda a miríade musical conhecida em playlists. No fundo não é muito diferente da seleção de músicas que meus avós separavam para ouvir quase toda tarde.

            A única coisa que mudou foi o espaço. Meus avós tinham uma coleção de quase 1000 discos de 78 rotações, e como sabiam que sou apaixonada por música, me fizeram prometer que eu seria a guardiã dessa preciosidade. E, fui. Os dois se foram. Todos os dias, os discos me olhavam, e eu olhava pra eles. Num arroubo de coragem decidi que chegara o momento de dar sentido àquele tesouro. Eles precisavam encontrar o destino nobre que mereciam. Hoje, estão todos disponíveis na coleção Rocha Ferreira do IMS. Aliás, quase todos. Alguns, eu escondi embaixo da cama para ouvir na minha vitrola. E, de todos, os que mais ouço são os da Carmen. Não a de Bizet, que incarnou sua sevilhana desvairada. Mas, a nossa. A portuguesinha mais brasileira que, por sorte, chegou na terra do Bambalê e se transformou num ícone mundial.

        A voz ágil, o charme, o jeito de corpo serelepe de rebolar, os turbantes exuberantes, os “crops”, a saia justa, comprida e aberta na medida certa para mostrar as pernas e os saltos plataforma, as pulseiras coloridas, os inimitáveis movimentos de suas mãos, e o sorriso que parecia ter sido tatuado em seu rosto. Eis Carmen Miranda!

            Sei uma coisa ou outra da sua biografia. Recebi com muita alegria a informação de que ela morou na Joaquim Silva aos pés do antigo Morro do Desterro, renomeado, graças ao convento das Carmelitas, Santa Teresa. Sei que ela chegou por lá com menos de um ano de idade. Que vendeu chapéus e que costurava muito bem. Seu sotaque é, possivelmente, o autêntico sotaque dos cariocas que, filhos de comerciantes portugueses, conviveram com a malandragem da Lapa e a nascente e próspera burguesia carioca. O “rrrrr” se perdeu, mas as vogais alongadas e o “s” chiado ainda são nossa marca registrada. “Quando você se requebrrrarrr caia porrr cima de miim, caaia poorr ciiima de miim”.  Ney Matogrosso, Gal, Caetano e o próprio Caymmi podem até ter um rosário de ouro, mas Carmen é quem tem os balangandãs.

        Até hoje lembro com carinho das discussões dos meus avós sobre quem era o maior, Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Charles Trennet, Aznavour, Gardel. Eu não tinha muita paciência e nem os conhecia muito bem. Então disparava: é o Sinatra. Meu avô com todo o seu garbo, me dizia. “Não vás apelar, mas tens razão. O Sinatra na época da Columbia Records. Senão, daqui a pouco estarás dizendo que esses bossa novistas têm voz!” Eu morria de rir, e pedia para eles colocarem “tico-tico no fubá”. Maria do Carmo Miranda da Cunha nasceu no mês do carnaval em 1909, em Marco de Canaveses, na região do Porto, norte de Portugal. Lançou seu primeiro álbum em 1929. Tornou-se nossa primeira artista multimídia, fez filmes nacionais, brilhou na Broadway, e levou para a telona de Hollywood a síntese tropical desse país inexplicável. Síntese que ela criou, interpretou e pela qual acabou morrendo. De pequena tinha só os 150 centímetros de altura, porque foi nossa maior embaixatriz, embaixatriz da música e da cultura brasileiras. Morreu em Beverly Hills aos 46 anos, possivelmente ainda amando as rodas de samba, os malandros, camarão ensopadinho com chuchu, dizendo “eu te amo” e não

“I love you”. 

        Liliane da Rocha Ferreira Nahon Marinho

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.